O dono do sassarico
Acervo do Teatro de Revista de Walter Pinto reúne textos, programas de peças, partituras e fotos de artistas e espetáculos
Vedetes da revista Botando Pra Jambrar, entre elas Nélia Paula (terceira, da esquerda para a direita). Reprodução de foto de Mafra. 1956. Cedoc/Funarte
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Democrático, colorido, sensual, cômico. O Teatro de Revista abraçava tais adjetivos com entusiasmo e, nos anos 40 e 50, tinha nome e sobrenome: Walter Pinto.
Produtor e autor dos maiores espetáculos do Teatro de Revista brasileiro, Walter Pinto doou seu precioso acervo em 1979 ao Serviço Nacional de Teatro (SNT) graças ao projeto Memória das Artes Cênicas – Campanha de Doação, por intermédio da coordenadora da campanha, Janine Resnikoff Diamante. Com sua equipe, ela resgatou o material – que teria se perdido – dentro da piscina da cobertura do artista, em Ipanema. Na época, um trabalho inicial de organização do acervo foi realizado para, dez anos depois, ser retomado no Centro de Estudos da Fundacen/Cenacen, com equipe de arquivistas contratados. Algum tempo depois, o trabalho foi interrompido, com retomada somente em fevereiro de 2010 pela Funarte.
Através do projeto Brasil Memória das Artes, um novo grupo de profissionais, com pesquisadores da área musical, das artes cênicas e de arquivo, desde então, se dedica a organizar e identificar o acervo composto, principalmente, por textos e programas de espetáculos, partituras musicais e fotos de artistas e montagens. “Nosso trabalho visa à criação de um arranjo arquivístico adequado, catalogação e indexação dos documentos e digitalização da coleção fotográfica do arquivo”, explica a pesquisadora do Centro de Documentação (Cedoc) da Funarte e autora de tese de doutorado sobre a coleção fotográfica do acervo Walter Pinto, Filomena Chiaradia.
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O trabalho, árduo, demanda, por exemplo, realocar partituras avulsas, não identificadas, a seus espetáculos de origem, como revela a pesquisadora de música Rosa Zamith. “Espetáculos inéditos utilizavam canções e números inteiros de montagens anteriores. Por isso, a identificação do material avulso do acervo requer uma atenção toda especial”. Parece complicado. E é. Mas os bastidores de tal trabalho revelam um cotidiano de pequenos prazeres, graças a curiosidades que descortinam o processo de produção, angústias e felicidades dos artistas envolvidos nas celebradas revistas da Companhia Walter Pinto. “Nas décadas de 1930 e 1940 um único mês chegava a reunir sete estreias. Eram muitos espetáculos sendo realizados ao mesmo tempo. Os compositores não davam conta de produzir tanto material inédito e a solução era utilizar também canções já conhecidas”, explica Filomena.
Produtor fazia viagens à Europa em busca de tendências para as revistas
O sucesso alcançado por Walter Pinto com suas revistas musicais era tão grande que, depois do êxito de Eu Quero Sassaricá, em 1951, o produtor se deu ao luxo de passar o ano seguinte viajando pela Europa a fim de pesquisar tendências para suas montagens seguintes. “As produções contavam com excelentes arranjadores e orquestra de, no mínimo, 18 músicos”, lembra Rosa, que se deparou com um enigma a partir de uma anotação descoberta em uma das partituras do acervo. “No fim de uma partitura da revista Maria Bonita encontrei a anotação Q.D.M.A. e pensei que pudesse ser algo relevante, mas, apesar de consultar os colegas da área, não descobrimos o que a sigla significa. Contudo, algo curioso despertou minha atenção, ao perceber que junto a cada letra havia uma anotação manuscrita a lápis. Eram palavras que complementavam as letras da sigla, o que nos revelou outro aspecto: o de um ambiente descontraído e pleno de brincadeiras entre aqueles músicos, pois junto a cada letra escreveram ‘Que Droga Me Arranjaram’. Tal anotação, mais tarde, também foi encontrada por Rosa em outra partitura, da revista O Guri.
“Havia casos de se ter que criar músicas para espetáculos que estreariam num prazo de apenas dois meses”, observa a pesquisadora, lembrando que o acervo, que vem sendo organizado, tem como destino uma base de dados do Cedoc que, depois da finalização do trabalho, estará à disposição de pesquisadores externos que quiserem consultá-lo, já organizado e restaurado.
De Carmen Miranda a Dercy Gonçalves
O auge da Companhia Walter Pinto se deu entre os anos de 1945 a 1955, com revistas como Muié Macho Sim Sinhô (1950) e ‘É Fogo na Jaca (1953). Montadas em escala industrial, as revistas reuniam vedetes brasileiras e estrangeiras e misturavam, sem qualquer pudor, estilos musicais. “A revista É de Xurupito, por exemplo, unia Rhapsody in Blue, do Gershwin, a samba”, lembra Rosa.
No acervo, é possível se deparar com impressos de partituras de canções icônicas, caso de Balancê, de 1937, interpretada por Carmen Miranda e utilizada na revista O Palhaço o Que É. Outro precioso impresso do acervo é o da canção Dig You Later, interpretada por Carmen Miranda e Vivian Blane no filme Sonhos de Estrelas (Doll Face) e também utilizada numa das revistas da Companhia Walter Pinto. Outro nome célebre a compor o acervo é o da atriz Dercy Gonçalves, cuja imagem ilustra o programa da revista Bonde da Laite, de 1945.
O processo de digitalização do acervo fotográfico permitirá ao grande público se encantar com imagens como a de Walter Pinto recebendo, no aeroporto, um seleto grupo de vedetes e bailarinas argentinas contratadas para o espetáculo É Xique Xique no Pixoxó, de 1960. “Quando finalizado, esperamos que o público, ao consultar o acervo, tenha o mesmo prazer que estamos tendo em organizá-lo”, anseia Filomena.
Na Série Depoimentos, ouça entrevista concedida por Walter Pinto ao Serviço Nacional de Teatro em 1975.