“Eu e Cacilda fomos inimigas apaixonadas”
Em entrevista ao Serviço Nacional de Teatro em 1974, Tônia Carrero fala de sua conturbada relação com a colega de profissão, ícone do teatro brasileiro

Tônia Carrero em depoimento ao Serviço Nacional de Teatro, em 1974. Foto: Ney Robson. Cedoc-Funarte.
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Parte integrante do volume IV da coleção de livros intitulada Depoimentos, que a partir de 1974 disponibilizou importantes entrevistas com alguns dos mais importantes artistas da cena teatral nacional, a atriz Tônia Carrero falou ao Serviço Nacional de Teatro no dia 18 de fevereiro de 1974. Elegantemente vestida, com uma camisa social branca, joias e o cabelo curto impecavelmente penteado, Tônia falou, ao longo da entrevista concedida a personalidades como o ator Paulo Cesar Pereio e a escritora Nélida Piñon, sobre o aspecto de sua figura pública e artística mais lembrado, e sempre tema de inflamados debates: a beleza.
Durante o bate-papo, a atriz afirma à jornalista Marisa Raja Gabaglia que ser bela nunca lhe representou um ônus: “A beleza não atrapalha ninguém… Isso não aconteceu com Ingrid Bergman, isso não aconteceu com Greta Garbo, com as mulheres mais lindas do mundo, por que haveria de ocorrer com a pobre e medíocre brasileira chamada Tônia Carrero?”, confronta a intérprete, considerada uma das mais belas mulheres que o Brasil já teve.
Navalha na Carne: Um salto artístico
Com Pereio, ela se lembra do salto artístico que foi encenar Navalha na Carne, texto de Plínio Marcos dirigido por Fauzi Arap que despojou-a da imagem de mulher bela e requintada. A peça, ambientada em um quarto de bordel, tem como personagens a prostituta Neusa Sueli, o cafetão Vado e o homossexual Veludo, empregado do estabelecimento, todos ali na retratação da existência subumana e marginalizada. A montagem, inicialmente proibida pela censura, ganhou repercussão no Rio de Janeiro, em outubro de 1967, como lembra o crítico Yan Michalski em resenha integrante do livro Reflexões sobre o Teatro Brasileiro no Século XX, publicação da Funarte de 2005. A liberação da peça pela censura é um capítulo à parte na conversa, com Tônia confessando ter feito uso da beleza no convencimento de políticos, como o ministro Gama e Silva.
“Tive de me utilizar de todo o meu charme, que eu fiz pra Gama e Silva. E tive que contar também com o seguinte: já era uma senhora atriz, com vinte anos de carreira”.À medida que a conversa avança, Tônia afirma não se considerar talentosa, mas perseverante, dedicada, lembra de suas incursões pelo cinema – “quando se acreditava que a Vera Cruz seria Hollywood – da companhia Tônia-Celi-Autran e de sua experiência no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC): “Éramos precursores da intelectualidade internacional”, afirma, ao lembrar da montagem do texto Huis Clos, de Jean Paul Sartre. “Havia gente que se levantava achando que aquilo agredia a moral burguesa”, continua.
No áudio disponível com a íntegra da entrevista, é perceptível o desconforto causado pela troca de farpas entre o autor, ator e diretor Aurimar Rocha, e a atriz. Nele também, está uma oportunidade única de ouvir o testemunho de Tônia sobre um de seus maiores desafetos: a atriz Cacilda Becker, considerada uma das maiores intérpretes da história do teatro brasileiro. “Cacilda tinha dez estrelas na testa. E morreu dizendo uma frase de Beckett em Esperando Godot. O mendigo pergunta: “O que é que você está fazendo?” Cacilda, deitada, respondia.”Estou olhando pra lua, que deve estar cansada de olhar pra terra e ver gente como nós”.
Com Cacilda Becker, a disputa na carreira e na vida amorosa
Provocada durante o bate-papo ao relembrar de Cacilda Becker, Tônia não procura meias palavras ao relembrar da conturbada relação entre as duas, quando Tonia decidiu tomar o lugar de Cacilda no coração de Adolfo Celi, italiano que veio para o Brasil em 1949 para ser o primeiro diretor artístico do TBC. A atriz se casaria com ele em 1957. “Eu e Cacilda fomos inimigas apaixonadas. Um ano e meio antes de ela ter ficado doente, eu disse a ela que só tinha querido o Celi por causa dela. Foi a coisa mais gratificante com que já presenteei uma mulher. Dei de presente a ela porque sabia que eu a fizera sofrer tanto. Não era exatamente aquilo, não, mas eu queria ser a atriz que Cacilda era. Eu queria o lugar dela. E Celi era a pessoa mais importante do teatro naquele momento…”