Nelson Rodrigues sabatinado por Fernanda Montenegro
'Achavam que eu era um tarado', diz autor em entrevista concedida em 1974 ao Serviço Nacional de Teatro
Francisco Cuoco, Fernanda Montenegro e Maria Esmeralda na peça 'Beijo no Asfalto', 1961. Cedoc-Funarte
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“Durante 10 anos, dia após dia, o leitor tomava conhecimento do adultério do dia. Era um adultério. A única coisa que realmente não morre com a história é o adultério. Faz um sucesso incrível, e o negócio de trair, mulher trair, ora, esse é o destino dela. E o homem compreendeu isso. Uma coisa deliciosa, uma satisfação cruel, incrível.” Em 1974, Nelson Rodrigues dava seu testemunho sobre a série de crônicas A Vida como Ela É, publicada durante uma década com êxito absoluto pelo jornal Última Hora e, mais tarde, nos anos 90, adaptada para a TV também com sucesso pela Rede Globo. Sabatinado por um time de entrevistadores que incluía a atriz Fernanda Montenegro, o autor de novelas Gilberto Braga, o dramaturgo Aldomar Conrado e o crítico Sábato Magaldi, Nelson Rodrigues discorre sobre suas peças sem meias palavras, como no momento em que lembra da dificuldade que foi escalar uma atriz para o papel principal de Toda Nudez Será Castigada: “Creio que, na maioria dos casos, os meus elencos têm horror aos meus textos. Achavam que eu era um tarado. Mas não é isso…”
Fernanda encomendou a Nelson uma peça: nascia, assim, ‘Beijo no Asfalto’
Ao lembrar que na adaptação cinematográfica da peça uma cena de cinco minutos foi cortada, devido ao teor sexual, e da acusação de morbidez recebida por Bonitinha, mas Ordinária, ouve de Fernanda Montenegro: “Também, se você não fizesse escândalo, ficaria um pouco decepcionado, não é, Nelson?” Com a atriz, lembra do primeiro encontro profissional de ambos. Ela levou oito meses ligando, insistentemente, para o dramaturgo, a fim de que ele escrevesse uma peça que ela estrelaria e produziria com o marido, Fernando Torres. Nascia ali Beijo no Asfalto, um grande sucesso. Mais tarde, Fernanda teria que descartar estrelar Toda Nudez Será Castigada por estar grávida: “Nelson, muito sabidamente, diz que eu me recusei a fazer, mas na realidade, ele demorou tanto para entregar o texto que, nesta altura dos acontecimentos, eu já estava grávida do meu primeiro filho”, relata a atriz.
Montada, a peça acabou estrelada por Cleyde Yáconis sob direção de Ziembinski, outro grande êxito. O elo entre Nelson Rodrigues e Fernanda Montenegro se daria ainda, como lembra ela, na novela A Morta sem Espelho, numa versão para a TV de Vestido de Noiva e na adaptação cinematográfica de A Falecida: “Onde você fez um trabalho magistralíssimo”, diz o autor à atriz. Especialmente saborosa, contudo, é a declaração do autor sobre um aspecto que o desagradou no filme: “Tinha um defeito: eliminava toda a parte de humor da peça”. O ator Nelson Xavier foi alvo da insatisfação do dramaturgo. “Um dia apareci lá para ver umas filmagens e vi o Nelson Xavier fazendo o cafajeste dionisiano, carioca e ainda por cima papa-defuntos, como se fosse o Laurence Olivier, um lorde inglês. Fiquei assombrado. Chamei ele num canto e disse: Ô, Nelson Xavier, pelo amor de Deus, você não está na Câmara dos Comuns. Te põe aqui numa funerária de quinta classe, ouviu?”.
Mais tarde, segundo o dramaturgo, o ator concordaria com o equívoco na composição do personagem, mas o filme de Leon Hirszman, no entanto, já estava pronto, e o diretor, irredutível. A entrevista concedida à série Depoimentos resultaria, ainda, em corajosa confissão daquele já então considerado um dos maiores dramaturgos do país de todos os tempos: escrevera A Mulher sem Pecado, sua primeira peça, sem ter babagem teatral alguma, tendo, até então, lido somente uma peça, e visto outra na infância. A bagagem literária, contudo, que ele considerava ‘monstruosa’, o ajudaria na carpintaria do ofício.